A menina brincalhona ainda mora na alma dessa colatinense da gema
Nilo Tardin – DDC News
Portal Colatina em Ação 21 de agosto de 2021
Quando Ceminha nasceu, a Vila de Collatina expandia numa velocidade estrondosa entrecortada pela estrada de ferro inaugurada em 1906.
A onda imigratória inundava as colônias de povos de 11 nações européias, africanos e nativos. A madeira, o café, navegação e a ferrovia apressaram o desenvolvimento do vilarejo no meio da mata.
Aos 100 Anos completos, Iracema Guimarães Clarindo Santos, a Ceminha preparava os primeiros passos neste tempo épico para se tornar a Dama do Centenário de Colatina.
A vida de dona Iracema se confunde com a história de Colatina que celebra a 22 de agosto de 2021 os 100 Anos de existência política e administrativa.
Em 1921, o réis era a moeda corrente. As linhas do trem e telegráfica da estação despejam as novidades da moda, cultura e tecnologia da Era Dourada. Em Itapina, distrito histórico a 20 km do centro as lojas de seda, cinema, carros importados e a pompa do casario revivia o espetáculo da belle époque brasileira.
A certidão dela é a prova. Nasceu em 4 de fevereiro de 1921 . Na escolinha aprendeu a ler e escrever. Logo pegou gosto pela arte e leitura. Sabia fazer com maestria crochê, bordados e doces, contou seu sobrinho Ponciano José Fidélis.
“Tia Ceminha nasceu e foi criada em Colatina. Primeiro morou em Barbados, depois na 14 de Julho, a Rua da Lama. Ajudou a cuidar dos sobrinhos. Foi tentar a sorte em Vitória. A seguir morou Vila Velha onde reside até hoje”, disse Ponciano.
“Meu sobrinho Ponciano era menino levado e atencioso. Formou-se contador e criou família disse orgulhosa dona Iracema ao recordar do “filho da Iracy”.
A menina sorridente e brincalhona ainda mora na alma dessa colatinense da gema, negra, vestido colorido de chita florida e cabelos branquinhos escovados para trás. Iracema hoje vive na Casa de Repouso Aconchego, em Araçás Vila Velha (ES).
“Iracema representa a resistência do povo negro por dias melhores. Espelha a luta e a vida de trabalho dos afros descendentes na construção de Colatina e do Brasil”, define o sábio professor Fernando Achiamé doutor em História.
Uma tropa de homens armados liderados pelo coronel Alexandre Calmon, o Xandoca transferiu na marra a Comarca de Linhares para Colatina em 1907. A papelada veio encaixotada de navio. A briga contra a correnteza obrigava os navios Tupy e Tamoyo a ziquezaguear nas barrancas do Rio Doce. A Lei 488 amparou a mudança.
A 30 de dezembro de 1921 por ordem do governo estadual Linhares deixa de existir. Passa a pertencer a Colatina conforme a lei 1.307. Colatina era o maior município do Estado. Abrangia uma área de 6 mil quilômetros quadrados, a sétima parte do total do solo espírito-santense. Somente 22 anos depois Linhares retoma a condição de cidade.
Ceminha era bebê de colo quando Vírginio Ferreira Calmon Fernandes foi nomeado o primeiro prefeito de Colatina. Ele era irmão do coronel Xandoca, forçado ao exílio após derrocada da Revolta de 1916. Diante do cenário de guerra, a Vila de Collatina foi capital do Espírito Santo por apenas 33 dias. Mas rebuscou o pedaço.
A fartura de madeira pontilhava as margens do Rio Doce de serrarias movidas a vapor. Na infância, dona Ceminha viu a rica madeira de lei sem igual no planeta virar montanha de pó de serra em Barbados.
Seu pai Clarindo Graciano era mecânico da Serraria Barbados. A mãe Ericina Guimarães costureira de mão cheia. Ericina era requisitada na confecção de roupas da elite local. O casal teve sete filhas.
“Iracy, Iracema, Irany, Maria, Iranilda, Alaydes e Irandy. “ Irandy faleceu aos 17 anos de tuberculose. Naquele tempo não tinha tratamento, tudo na base de garrafadas, plantas e chás”, contou Iracema na conversa por telefone antes do almoço na Casa de Repouso Aconchego, em Araças – Vila Velha (ES).
A Dama do Centenário fala repentinamente da importância do trem na vida dos colatinenses nos Anos 40. Lembra das vagonetes carregadas de café, madeira e gado. A Maria Fumaça no eterno leva e traz retornava lotada de ferramentas, cereais, tecidos, pregos, arame, perfumes, botões, linhas agulhas, cultura, beleza e qualquer encomenda que a cidade precisasse.
O amor que a vida lhe reservou deixou marcas profundas no seu coração. Casou-se em 1948 de ‘papel passado’ com José Pascoal, o padeiro.
A vitrola – hoje é peça de museu – era vedete na sala dos casarões ornados por lustres de cristais da bohemia. Os cafezais floresciam a mil por hora a ponto de a cidade conquistar o troféu de maior produtor de café do mundo em 1956.
“Andei bastante de trem. Ia passear com o Pascoal na estação. Esperava o trem chegar para comprar jornal, revistas e livro. Aos domingos havia missas na Igreja Matriz. Dias de semana adoração ao Sagrado Coração de Jesus. Eu fazia parte do Apostolado da Oração. Usava fita vermelha com meu nome e medalhinha de Nossa Senhora da Graça”, contou ao DDC News.
Iracema rememora as brincadeiras na Rua da Lama, logo que a família se mudou de Barbados. “Ficava brincando na rua até 11 h da noite à luz da lua. Clareava tudo. Nossa diversão era brincar de roda, pique esconde pular corda e amarelinha. Mamãe chamava, a gente corria pra dentro senão já viu né”, recordou lances da infância ao lado das irmãs.
Não queria ir embora da cidade natal, mas a erradicação dos cafezais em 1962 causou prejuízos avassaladores à região. Muitos abandonaram o interior e migraram para a cidade grande. Inclusive ela e familiares.
“A vontade dela de viver impressiona. “Nunca fala da morte. De uns tempos para cá anda com ajuda do cuidador. Vive alegre mesmo depois de perder a visão. “É disciplinada nas horas das refeições, medicamentos e passeios no jardim”, destaca a gerente Ana Borges. A luta vitoriosa contra o Covid-19 tem mantido toda equipe em estado de alerta geral no lar de idosos.
A Casa de Repouso Aconchego no Araçás existe há 10 anos. Trinta idosos vivem lá em comunidade, informa a gerente. Ana destaca a dedicação das proprietárias da Aconchego Thalita Alves Dettman e Paola Andrade Oliveira, ambas pós graduadas em gerontologia no Hospital Albert Einstein (SP).
Os bailes na base da sanfona do Clube O Cruzeiro do lendário vereador Zim Caveira, era a única diversão das redondezas na juventude. As moças eram acompanhadas de perto pelo zeloso Clarindo.
”Mamãe não gostava de baile. Papai nos levava. Ele também apreciava pescar. Ia com ele. Fazia cada panelada de moqueca baiana. Não comia. Não gosto de peixe de jeito nenhum”, disse bem humorada.
Iracema diz na ponta da língua os nomes dos sobrinhos e das irmãs já falecidas. “Só ficou eu pra semente”, diverte-se.
O que a senhora gosta de comer dona Ceminha: “batata doce e ovo. Não posso mais comer qualquer coisa”, respondeu de riso aberto.
Colatina de 123 mil moradores continua sendo um dos mais importantes municípios do Espírito Santo.
Por Nilo Tardin – Jornalista do Site DDC News